Quando a
psicanálise atingiu o auge de sua influência cultural na década de 80 do século
passado, acostumamo-nos a fazer leituras a partir do pensamento freudiano de
toda manifestação, política, social, econômica, cultural e que mais.
Desde então a psicanálise
tem perdido prestígio como chave universal de interpretação, até por sua
empáfia e arrogância de supersaber e fragilidade teórica, já que o próprio
Freud sempre a entendeu como um saber inacabado e provisório.
É surpreendente ver
aqui e acolá, o renascimento destas interpretações ingênuas e tendenciosas
travestidas de saber psicanalítico, expostos de maneira simplista e propagandistas
de um saber pseudo-“auto-evidente”!
João Pereira
Coutinho fez, na terça-feira, na Folha de São Paulo de 14 de março uma análise
breve, inteligente e perspicaz do belíssimo filme de Martin Scorsese, “Silêncio”.
O que mais nos chama a atenção é que o silêncio que dá nome ao filme é chave
para múltiplas interpretações, começando pela falta de trilha sonora, o que
transfere para o destinatário da obra cinematográfica, àquele que assiste,
trabalhar de forma crua os sentimento, as vivências do que se passa na película.
É impressionante a força dramatúrgica e o envolvimento da plateia com o que se
passa. É questionador, é ambíguo, faz-nos viver tão intensamente a devoção dos
cristãos das terras japonesas, quanto o desalento e a morte espiritual de
Ferreira.
O florescimento do
cristianismo no Japão pelos missionários japoneses foi uma aventura imensa de
fé, uma afirmativa resposta ao chamado bíblico do Senhor de levar a verdade que
animava os discípulos de Loyola a todos os cantos da humanidade, uma bela
demonstração da universalidade do cristianismo, de sua força moral e
vitalidade.
A reação do xogum
em 1614 é antes de tudo uma reação política, porque o estado japonês do século
XVII ainda está na fase da legitimação religiosa do poder e, enquanto o
cristianismo ocidental transfere o poder religioso para um Deus para além dos
homens, o budismo ateu torna a hierarquia empedernida e representativa de
classe imune a reformas sociais e ao direito dos mais pobres.
O sucesso do
cristianismo no ocidente, bem como o operado no Japão medieval está em sua
mensagem revolucionária a favor do pobre, do desvalido, daquele que tem que se
esconder para professar a fé da igualdade e do valor distinto do humano.
Calligaris, que rebate a análise em 16 de março na ilustrada da Folha, comete
muitas impropriedades em sua crítica ao filme e à análise de Coutinho. Em
primeiro lugar, esqueceu de falar da
obra que foi resgatada pelo cineasta e pela genialidade de construção de uma expressão
de arte visual.
Segundo que a
história não tem “ses”. Não podemos esquecer que o budismo também não era autóctone
do Japão, era flor exótica tanto quanto o cristianismo. Terceiro que as guerras
religiosas na Europa se davam entre príncipes que buscavam subverter a ordem
medieval da ideia de Império, e eram consequências da própria forma de pensar o
cristianismo, como igualdade, como possibilidade de várias chaves
interpretativas.
Por fim e mais
grave, como psicanalista, não conseguiu perceber o drama de Ferreira que se
acovarda e então comete a apostasia e de Rodrigues que imola sua fé para salvar
os japoneses que professavam o cristianismo, tal qual Judas fez ao cumprir o
seu desígnio na economia da salvação.
Dizer que “Silêncio”,
obra escrita por um japonês católico interpretando a história do cristianismo
no Japão nos séculos XVI e XVII é uma obra inverossímil é o mesmo que dizer que
Interpretação dos Sonhos de Freud é uma obra igualmente inverossímil para a
neurociência do século XXI. Deixou de apreciar a beleza literária de uma forma
de entender a história, colocou filtros preconceituosos e pretensamente “politicamente”
corretos para interpretar uma obra que muito provavelmente não leu.
Calligaris fala de
Ferreira no século XVII como fala de si mesmo, interpreta as dores e as dúvidas
de um jesuíta do início da idade moderna com os valores morais, sociais e
culturais de um psicanalista do século XX. Confunde-se com o analisado,
atribuí-lhe as suas fraquezas e por fim, desconstrói a história deixando no
lugar uma "psicanalhice" pobre e enviesada.
Ler o livro, assistir
o filme e vislumbrar a dimensão do sofrimento humano tornam a obra visual e a
literária dois grandes momentos de magia que não se confundem com restaurantes
e antiquários kitshs de Nova York, Londre ou Paris!