quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Deodoro faz escola no Peru





Países nos quais a tradição da ordem democrática e do Estado de Direito não se consolidaram, permanecendo um ranço caudilhesco, sempre há a possibilidade da ruptura constitucional e há um namoro com a ditadura do salvador da pátria. No Peru tal tentação está sempre presente, Alberto Fujimori é exemplo recente.
Quando Montesquieu defendeu a distribuição do poder soberano por três instituições do Estado, visando a defesa da cidadania e a proteção contra o abuso do poder, tinha em mente que cada uma preservaria para si uma porção generosa da soberania e que através de um mecanismo de freios e contrapesos, garantiriam o Estado de Direito.
Não há na teorização da construção do Estado sob este paradigma uma preeminência de um dos poderes, mas o primeiro país que implantou um sistema amparado em suas ideias, manteve na figura do chefe do poder executivo, algumas das prerrogativas dos Reis dinásticos, como a representação externa e o comando da chefia das forças armadas.
Esta pequena concessão criou um desequilíbrio que levou a Benjamin Constant de Rebecque perceber a necessidade de um Poder Moderador que funcionasse como chave interpretativa e funcional dessa tripartição.
A democracia e o Estado de Direito apenas tiveram viço nos países latino americanos após a independência no único país monarquista, o Brasil. E apenas porque foi sábio o suficiente para acolher o pensamento de Benjamin Constant e evitar o caudilhismo, a praga que graça até nossos dias nos países de tradição ibero-espanhola.
No entanto, quando do golpe militar que instaurou a ditadura militar de 1889 a 1891 e a República, Deodoro da Fonseca trouxe para o Brasil essa maldição do poder imperial de presidentes militares ou apoiado por militares, que desrespeitam as instituições em nome dos mais variados motivos, desde clamor popular até visões salvacionistas.
Foi com a postura arrogante de um chefe imperial que Deodoro alegando que não havia condições mínimas para exercer com dignidade o seu posto, decretou a dissolução do Congresso eleito em 1890. Ainda sob a sombra do período Imperial, o Brasil rejeitou a manobra e Deodoro teve de renunciar ao poder e entrega-lo ao “marechal de Ferro” de triste e assassina memória.
Assim, em 2019 se repete no Peru essa triste tradição de um presidente julgar democrática a solução de fechar o Congresso e impor um ruptura com a ordem Constitucional, resultado do enfraquecimento das instituições republicanas, em processo alarmantemente paralelo com o que vem se sucedendo, não na mesma proporção, em nosso país.
Martín Vizcarra se escuda num questionável apoio popular para desmantelar o Estado Democrático de Direito. O caso do Peru é a soma de megaescândalos de corrupção, com um sistema político extremamente fraturado e dividido, a perda da dignidade da classe política e um judiciário incapaz de com responsabilidade defender a Ordem Constitucional.
O problema é que as semelhanças com o nosso país são perturbadoras. O Ministério Público vem se comprometendo com um ativismo político inaceitável e as confissões abobalhadas de Janot só vêm para reafirmar a instrumentalização política de um órgão de Estado que deveria ser o custus legis, ou seja, o defensor da Lei.
O Judiciário interpreta a seu bel prazer a Constituição e utiliza um inquérito para fazer busca e apreensão na casa de Janot, sem que haja crime a ser apurado, na busca de provas de uma propaganda mal intencionada de um livro mal escrito.
O Executivo, bom, este está sem programa, sem direção política e apostando num salvacionismo avant la lettre, tal qual um Sebastião que volta do passado da ditadura militar para salvar o Brasil de sua democracia.

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